domingo, 14 de agosto de 2011

O Bisturi e o Tear


Taunay Daniel

Quando, em 1958, eu comecei a cursar a primeira série do ensino fundamental (que naqueles tempos chama-se ginasial), todos os alunos usavam uniforme. Tratava-se de uma escola pública de São Paulo, reconhecida pela alta qualidade do ensino que prestava aos seus discípulos.

Era um uniforme discreto: jaqueta cinza-azulado, camisa branca e calças grafite (saia para as meninas). Havia um detalhe muito importante na jaqueta, um emblema bordado do lado esquerdo superior onde se costuma dizer que é o lugar do coração. O desenho do emblema representava a idéia de átomo que se tinha naquela época. Eram três elipses, representando três órbitas de elétrons, todos girando em torno de um núcleo. No lugar do núcleo, entretanto, estava desenhado um livro aberto.

Era inegavelmente uma idéia interessante, um símbolo muito claro de uma época. Pretendia significar, explícita ou implicitamente, que a ciência clássica havia obtido o grande e definitivo sucesso de compreender e descrever a estrutura mínima da matéria, os micro-tijolos que compõem o Universo. Além disso, naquele emblema do uniforme, o núcleo do átomo era um livro, vale dizer, o conhecimento racional e sistemático que tudo poderia responder e explicar sobre os enigmas do mundo em que vivemos e sobre nós mesmos.

Era isso o que nos ensinavam na escola: que havia uma forma única e triunfal de conhecer o mundo. Uma forma objetiva que conduzia necessariamente à verdade, sem nenhuma “contaminação” de subjetividades inconvenientes que só fazem macular o saber cristalino que o racionalismo científico produz. Com isso podíamos nos sentir protegidos e confiantes.

E assim eu fui educado, como tantos outros o foram e são até os dias de hoje. Aprendemos a acreditar que existe uma maneira muito superior às outras de abordar e conhecer a realidade. Aprendemos a adotar uma determinada mentalidade, uma espécie de lupa especial supondo que, através dela e somente assim, podemos ver as coisas como realmente são.

Essa mentalidade, que podemos chamar de cientificismo, desde há muito se infiltrou em toda a sociedade, quer percebamos ou não. Ela tem uma origem histórica. Nasceu na Grécia antiga e foi se aprimorando e consolidando ao longo do tempo passando por diversas etapas até chegar ao seu grande apogeu em meados do século XIX até o início do século XX.

Foi tal o sucesso da ciência em fazer predições e estimular novas tecnologias, que a palavra “científico” passou a ser sinônimo de verdadeiro. Não é raro, mesmo atualmente, ouvir alguém dizer para por fim a uma discussão: “o que eu estou dizendo é científico”! O outro interlocutor da conversa fica paralisado quando é invocado algo tão poderoso como a Ciência.

Não é à toa que fazemos apelo à Ciência para justificar todo o tipo de ações na educação, na política, na economia, na saúde, na justiça, na publicidade, na indústria, no comércio, etc. A Ciência tornou-se a grande avalista dos procedimentos em inúmeras áreas da atividade social, desde os mais honestos e bem intencionados até os mais perniciosos.

É claro que uma criança (como eu era em 1958) não tinha nenhuma consciência do significado daquele emblema na jaqueta do uniforme escolar. Aquela mentalidade impregnou-se em mim sem que eu percebesse e custou-me muito esforço para livrar-me dela. Foram precisos muitos anos para desvestir aquele uniforme simbólico.

O mais curioso é que naquela época a ciência clássica já havia sofrido duros golpes que a removeriam do trono da soberania hegemônica do saber. A Física, a mais ortodoxa entre todas as disciplinas científicas, dava claros sinais, já no início do século XX, de que o método científico clássico não poderia a tudo responder.

Mais curioso ainda, é que mesmo hoje em pleno século XXI, com a rainha tendo sido deposta há muito tempo, tudo continua a ser como se ela ainda estivesse governando, como se os habitantes do reino não tivessem sido informados que o trono está vago. Ainda não sabemos que um novo império está sendo constituído e seguimos procedendo segundo o antigo regime.

O “Império da Razão” está cedendo lugar para o “Império da Consciência”. Entretanto, a sociedade ainda levará algum tempo para reconhecê-lo, aceitá-lo e para reger-se pelas novas leis. Haverá muita resistência, muito enrijecimento, até que a flexibilidade se imponha.

Antes, éramos governados por uma mentalidade de bisturi que dissecava tudo, decompunha o mundo em pequenas partes, via o Universo como um amontoado de coisas separadas e desconexas umas com as outras, inclusive nós mesmos, como se nossa pele fosse uma fronteira bem nítida entre nós e o resto do mundo. Um mundo numérico, discreto, com demarcação precisa de limites. O mundo da verdade. Uma mentalidade que supunha que tudo poderia ser dito e descrito.

Na nova era que se impõe, seremos governados por uma mentalidade de tear, que entrelaça tudo com tudo, que entrevê a Unidade em tudo, que percebe o mundo como um organismo sistêmico, que percebe que há algo de transpessoal em cada um de nós que nos une a todos numa consciência única da Vida. Um mundo analógico, contínuo, sem demarcação de limites. O mundo da transcendência. Uma mentalidade que reconhece que o essencial é inefável.

Em 1958 tudo isso era ainda muito recente para que pudéssemos nos dar conta. Só quem estava na linha de ponta da pesquisa científica estava ciente das grandes transformações pelas quais o conhecimento iria passar. Meu uniforme e eu acolhíamos sem resistência o emblema simbólico.

Tudo leva a crer que o emblema a ser bordado na jaqueta do novo uniforme das escolas do século XXI deverá ser uma Mandala.

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