quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Alfabetização Ecológica, do que estamos falando?



Miriam Duailibi
“Todos somos membros plenos e cidadãos da mesma comunidade biótica”
                                                                                                 (Aldo Leopold)
No advento do século XXI, o avanço da ciência e da tecnologia, sobretudo a da
comunicação, já nos tornou possível saber o quanto e como as ações antrópicas afetam
os ecossistemas e a biosfera. Conhecendo a escala e o volume cada vez maiores da
ocupação do planeta pela espécie humana seria absolutamente temerário não tomarmos
consciência de nossa condição de seres planetários para muito além das divisões em
nações, tribos, raças, credos, etnias, classes sociais, cultura, língua, política.
O grande desafio que se coloca é responder a questão: Como vamos viver à luz do fato
de que estamos todos entrelaçados em uma única e indivisível comunidade de vida
altamente ameaçada pela enorme proporção que assumimos e por nossa absoluta falta
de cuidado?
O processo civilizatório instituído no Planeta pela espécie humana nos últimos
10 000 anos, instaurou uma verdadeira máquina de destruição que vem crescendo em
progressão geométrica.
Foram marcados por uma visão antropocêntrica de mundo, pelo desconhecimento da
condição ternária (indíviduo/comunidade/espécie) do ser humano e pelo rompimento de
sua ligação com a natureza.
A palavra ecologia, vem do grego óikos que significa casa, lar, ecologia, portanto, é a
ciência da administração do Lar-Terra, da Pacha-Mama, grande mãe, como nosso
planeta era designado nas culturas andinas, ou de Gaia, organismo vivo, como era
chamado na mitologia grega e também o é na moderna cosmologia.
A palavra educar vem do latim Educere (extrair conhecimento).
Nas próximas décadas a sobrevivência da humanidade vai depender da nossa
ecoalfabetização, ou seja, de nossa habilidade de extrair conhecimento da natureza,
entender  os princípios básicos da ecologia e de viver de acordo com eles. Para tanto, a
educação das atuais e próximas gerações para a compreensão dos paradigmas que
mantém o ciclo da vida faz-se imprescindível.
Quando se estudam os princípios básicos do funcionamento da natureza, percebe-se que
tudo está muito fortemente relacionado. São apenas diferentes aspectos de um único
padrão fundamental de organização que permitiu à natureza sustentar a vida por bilhões
de anos.
A natureza sustenta a vida criando e nutrindo comunidades.  Nenhum organismo individual pode existir isoladamente. Animais dependem da
fotossíntese das plantas para suprir suas necessidades de energia; plantas dependem do
dióxido de carbono produzido pelos animais, assim como do nitrogênio fixado pela
bactéria em suas raízes; e juntos plantas e animais e microorganismos regulam toda a
biosfera e mantém as condições que conduzem à vida.
Sustentabilidade, portanto, não é uma propriedade individual, mas sim propriedade de
uma rede completa de relações. Sempre envolve toda a comunidade. Esta é uma
profunda lição que devemos aprender da natureza, mas que se contrapõe ao paradigma
dissociativo e excludente vigente em boa parte de nossa civilização.
Educar para sustentabilidade ou alfabetizar ecologicamente, significa ensinar ecologia
profunda em uma maneira sistêmica e multidisciplinar. Significa conhecer não só
metabolismo natural, estudar os impactos das ações antrópicas no meio ambiente, mas
também o metabolismo social com a natureza, as repercussões dos impactos dos
ecossistemas nas próprias relações sociais, redesenhando as estruturas de classe e poder.
 A alfabetização ecológica pressupõe uma visão sistêmica da vida. Sua fundamentação
teórica está baseada na teoria dos sistemas vivos. No entanto precisa ter conteúdos
específicos ou ser uma dimensão fundamentada em princípios e critérios que perpassam
várias disciplinas, ser um espaço de diálogos, de encontros entre os múltiplos saberes e
fazeres.
Alguns teóricos afirmam que se a sustentabilidade está baseada na compreensão dos
ecossistemas, isto é, em ecologia, bastaria que se universalizassem seus princípios,
especialmente nas escolas. Porque então simplesmente não ensinamos ecologia às
nossas crianças, perguntam eles?
Porque a ecologia como tradicionalmente entendida, não contempla as especificidades
da sociedade humana, sua história de produção e distribuição de riquezas.
Nas sociedades humanas são as relações de produção e consumo que determinam as
relações com a Natureza.
A ecologia perde de vista a motivação, as causas e as conseqüências sociais dos
problemas ambientais.
A divisão tradicional das ciências faz com que as relações técnicas sejam estudadas
pelas ciências físicas, exatas e as relações sociais pelas ciências sociais.
Para a alfabetização ecológica, as duas teses não se excluem, ao contrário, se
complementam.
Está alicerçada em uma visão sistêmica da questão, onde as ciências ecológicas e sociais
se encontram com os saberes e fazeres tradicionais, contemplando simultaneamente as
dimensões econômica, social, ambiental, cultural, pedagógica, política e ética da
sustentabilidade.
Educar para uma vida sustentável é promover o entendimento de como os ecossistemas
sustentam a vida e assim obter o conhecimento e o comprometimento necessários para
desenhar comunidades humanas sustentáveis. Na pedagogia da educação para uma vida sustentável, currículo é o conteúdo e o
contexto que dão suporte ao aprendiz para que, de forma criativa, possa desenvolver
comportamentos, valores e a compreensão do mundo.
Com quais competências precisamos nutrir as crianças para prepará-las para participar
integralmente como membros de comunidades sustentáveis?
 O desafio dos educadores que adotam esta pedagogia é capacitar seus alunos com
habilidades práticas, analíticas, filosóficas e éticas, despertar nelas um sentido de
admiração e respeito com a natureza  para que eles possam redesenhar a presença
humana neste mundo.
Como as escolas podem se engajar significativamente nos temas críticos como o
sistema alimentar, a energia, as bacias hidrográficas, justiça social e ambiental?
Vejamos o exemplo do Centro de Alfabetização Ecológica de Berkeley, na Califórnia
(Center of Ecological Literacy-CEL) que vem desenvolvendo uma pedagogia chamada
de “Educação para Padrões Sustentáveis de Vida”, cujas bases estão na teoria dos
Sistemas Vivos e na sabedoria das populações tradicionais.
O CEL e seus parceiros em todo o mundo compartilham a visão que é preciso promover
uma reforma sistêmica nas escolas, que esta reforma passa prioritariamente pela
compreensão de que o currículo é o próprio lugar onde a aprendizagem se dá, ou seja, é
o ambiente em que a escola está inserida – sua geografia, sua história, a cultura das
comunidades do entorno - que aponta os conteúdos a serem explorados.
Aproximando-se muito de Paulo Freyre, a alfabetização ecológica é uma pedagogia
baseada no local e na participação direta e intensa da comunidade escolar. Alunos,
professores, diretores, funcionários, pais e comunidade, juntos decidem qual projeto
(sempre fortemente relacionado à melhoria da qualidade de vida e do ambiente local)
deverá ser enfrentados naquele ano e, a partir deste consenso, professores passam a
explorar as respectivas matérias.
Alunos de graus mais avançados ocupam-se, por exemplo, da documentação do
processo, da elaboração de um banco de dados, de pesquisas científicas necessárias etc.
São fortemente estimuladas as interconexões com a comunidade local e o respeito à
diversidade. Assim, crianças sentem-se motivadas a estudar a civilização chinesa em um
local onde a imigração desta etnia é bastante presente e interfere no “ecossistema” local
e assim por diante.
Quando a comunidade escolar se engaja profundamente em resolver problemas de
restauração de um ecossistema circunvizinho, um rio, uma subbacia, um lixão, exercita
um capacidade essencial à manutenção da qualidade de vida no planeta: o cuidado com
as diferentes formas de vida.
Uma visão como esta  não permite aos formuladores da pedagogia criar um único
currículo que possa ser “exportado” para todo o sistema escolar de um país ou sequer de
uma grande metrópole, uma vez que o respeito às especificidades do meio e da história
local apontarão os conteúdos, as ferramentas e estratégias a serem usadas no processo
educacional. A reforma escolar proposta é um movimento que reflete muito das percepções
sistêmicas articuladas por Fritjof Capra, encorpadas pelo estudo do modo de vida das
populações tradicionais que há séculos habitaram e/ou habitam aquele local. Os espaços
de locução e as instâncias de decisão na alfabetização ecológica têm forte influência do
modo circular indígena de discussão e de busca do consenso. A exemplo das redes
naturais, os povos tradicionais, também tinham sua hierarquia definida pelas habilidades
específicas de cada membro da comunidade, pela capacidade de entender o contexto e
pela complexidade da função atribuída na Rede.
O movimento reconhece a escola em si como um ecossistema do qual o aluno faz parte
e no qual é afetado pelos valores culturais da escola e das comunidades do entorno. As
escolas que estão neste movimento se vêem como comunidades de aprendizagem que
funcionam em redes de relações.
A Alfabetização Ecológica busca por em prática as teorias que a sustentam, aplicar
conceitos da Teoria dos Sistemas, ciclos, fluxos, sistemas aninhados, redes em
planejamento de projetos coordenados que conduzem a resultados tangíveis na
construção de mudanças sistêmicas e sustentáveis na educação.
Sabendo-se que a natureza sustenta a vida por meio da criação ininterrupta de redes,
uma das preocupações mais fundamentais tem sido conveniar escolas exemplares e seus
parceiros em redes de sustentabilidade para estimular a emergência da inovação, como
por exemplo a Rede STRAW – Students and Teachers Restoring a Watershed, que
aglutina mais de  mais de trinta escolas e uma centena de professores em torno da
questão de recuperação da subbacia local e da restauração do habitat natural do camarão
de água doce, fonte de renda da população local.
 
A teoria dos sistemas desenha uma nova maneira de ver o mundo e uma nova maneira
de pensar conhecida como pensamento sistêmico. A partir daí surge uma profunda
mudança de perspectiva: das partes para o todo; da preocupação com objetos para o
concernimento com as relações; do procedimento de se mensurar para o de mapear; da
quantidade para a qualidade; do foco nas estruturas para o foco nos processos.
O Instituto Ecoar para Cidadania tem por missão contribuir com a construção de
sociedades sustentáveis e ao longo de seus 12 anos de atuação vem desenvolvendo
metodologias educacionais para este fim.
No início do novo século, uma série de felizes coincidências nos conduziu ao encontro
da pedagogia desenvolvida pelo CEL, inspirada nas teorias de Fritjof Capra, David Orr,
Jeanette Armstrong, Gunter Pauli entre outros. Ali encontramos uma grande
similaridade com nossas práticas tais como a noção de “pedaço”, o estudo do meio, o
levantamento da história local, os processos participativos, a chamada pedagogia de
projetos, a preocupação com a geração de trabalho e renda, entre outras.
Por outro lado, percebemos como eles tinham avançado em impregnar com
cientificidade suas práticas mais corriqueiras. Uma horta, para a alfabetização
ecológica, não é só um local onde se produz alimentos sem agrotóxicos, para a merenda
escolar e/ou para gerar renda complementar à comunidade, mas o lócus onde se
observam os ciclos e fluxos dos ecossistemas, onde se aprende que na natureza o
resíduo de um espécie é o alimento de outra, onde se vê que a energia vem do sol, se presencia o metabolismo, se percebem as redes, os sistemas que se aninham dentro de
outros e assim por diante.
Surpreendeu-nos ainda mais a eficiência do método no envolvimento dos atores locais,
independente de faixa etária ou de classe social. Uma extraordinária capacidade de
transmitir os padrões que sustentam a vida de forma lúdica e atrativa tornou muito mais
fácil despertar na comunidade local o sentido de pertencimento à uma mesma
comunidade biótica.
 Seja em escolas, em comunidades de baixa renda, no meio das ONGS ou das grandes
empresas, as práticas de alfabetização ecológica que adotamos têm contribuído muito no
cumprimento de nossa missão. Por onde passa, esta educação que alia ciências
ecológicas e sociais,  história e arte, tem tido o dom de despertar nas pessoas um senso
de admiração e respeito por todas as formas de vida e um, até então desconhecido,
profundo sentimento de comprometimento ao se perceber parte fundante da  intrincada e
fascinante Teia da Vida.



Educação para Sustentabilidade.i é Coordenadora Geral do Instituto ECOAR para Cidadania,
da Associação Ecoar Florestal e do Centro Ecoar de Educação para
Sustentabilidade. É professora convidada da Fundação Getulio Vargas e da
Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde ministra o curso de Educação para Sustentabilidade.

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