Algures, em 30 de Agosto de 2007
Querida Alice, Chegou, finalmente, o dia do teu sexto aniversário. Finalmente, porque a pressa de ser grande se transforma em impaciência quando os aninhos ainda podem ser contados pelos dedos.
Entre Agosto e Setembro, entre o brincar sem cuidados e o ir à escola é só um saltinho de pardal. Dentro de poucos dias, a criança que és há-de ser “aluno”. Presumo que não vás perceber a diferença, mas não ouso afirmar. Quero apenas acreditar que, em 2007, já não sofras os dramas que crianças de outras gerações suportaram. Nasceste no primeiro ano deste século, mas houve alguém que, já no início do século XX, escrevia que aquele seria “o século da criança”. Enganou-se.
Como todas as crianças, sentirás apreensão e curiosidade. Irás fazer novos amigos e conhecer adultos que, supostamente, te ajudarão a crescer e a compreender o mundo. É sobre esse mundo novo e misterioso, que se abre para os teus olhos de menina curiosa, que eu te venho falar. Venho contar-te as histórias que não te pude contar quando eras mais pequenina. Eu explico...
Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, à semelhança de outros professores em início de carreira, os teus pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam a incerteza da “colocação”. Eu explico...
“Colocação” era o final feliz de uma angustiada espera. A “colocação” dava aos teus pais a certeza de que, pelo menos durante um ano, poderiam fazer o que gostavam de fazer: ensinar e aprender numa escola como aquela onde vais viver alguns anos da tua vida. E era também nessa diária aventura de ensinar e aprender que os teus pais amealhavam o seu sustento e asseguravam o teu futuro.
Os teus pais conheceram-se, amaram-se e quiseram que viesses ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. E aceitaram a sina de, ano após ano, levarem a casa às costas para onde o acaso do “concurso” os atirava. Eu explico...
“Concurso” era um estranho jogo, um jogo de acasos, que os professores eram obrigados a jogar naquele tempo. O “concurso” era impiedoso e, no final de cada anolectivo, impunha a violência da separação àqueles que se começavam a conhecer e a compreender. O “concurso” era cego, pouco se importava com os afectos e nada entendia de criar laços.
Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados daqueles que aprenderam a amar, os teus pais mudavam de casa, ano após ano. Dentro da casa, levavam o teu berço para longe das paragens habitadas pelos teus avós. Era assim naquele tempo e, só por isso, não pude estar junto de ti para te contar o mundo pelo caminho dos bosques e palácios de sonho habitados por duendes e príncipes encantados. E tu não pudeste ensinar-me a gramática de tempos que serão teus e que, certamente, já não poderei ver.
Mas sei que os teus pais te afagaram com a meiguice das palavras que crescem no coração dos pais. Tenho a certeza de que se debruçavam sobre o teu rosto quando ainda só falavas com o olhar, para te dizer do imenso afecto que os unia e de que eras o fruto maravilhoso. Estou certo de que embalaram o teu sono com histórias que te ajudaram a afugentar as sombras e os medos da infância.
Se não te disse as palavras doces no tempo certo, agora me redimo. Falar-te-ei em nome de todos aqueles que, em perturbados tempos, se deram a utópicas tentativas de dar sentido a experiências que a maioria das crianças que foram as da geração dos teus pais e avós não puderam conhecer. Falar-te-ei de professores que acreditavam ser possível pôr humanidade no acto de aprender e ensinar. Quero que saibas que havia pessoas assim.
Aqui chegado, pressinto que te interrogues: afinal de que estás a falar, avô Zé? Estou a falar de histórias que ficaram por contar. Através das imperfeitas palavras, farás a viagem ao tempo em que em que se desenhavam os destinos das crianças futuras, projectos (como então se dizia) de escolas de um devir luminoso. Disso te falarei amanhã.
Com amor,
O teu avô José.
Prof José Pacheco
recebi por e-mail não posso guardar só pra mim
Ivone
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